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O Inquérito ‘fake news’ e os Sistemas de Processo Penal

Por Ricardo Torres

Em março desse ano, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, por conta própria, abriu inquérito sobre fake news para averiguar supostas críticas ofensivas à Corte, feitas em grande parte nas redes sociais, e nomeou o Ministro Alexandre de Morais o relator. Muitas foram as críticas acerca da iniciativa desse inquérito, por variados motivos apresentados por diversos juristas e instituições pertinentes. Alguns dias após a abertura do inquérito, a Polícia Federal, por ordem de Moraes, já realizava diligências atinentes à investigação.

No dia 11 de abril de 2019, a Revista “Crusoé” publicou uma matéria acerca de um documento que foi enviado pelo empresário e delator Marcelo Odebrecht à Polícia Federal, no âmbito de uma apuração da operação Lava-jato no Paraná. Tal documento dispõe sobre esclarecimentos acerca de tratativas ilícitas realizadas pelo e-mail do empresário, e liga o atual Presidente do STF (então Advogado-Geral da União), a tratativas que envolviam as usinas hidrelétricas do rio Madeira, em Rondônia. A principal dúvida dos investigadores recaía sobre quem seria a pessoa indicada como “amigo do amigo do meu pai” que, segundo Odebrecht, era o Ministro Dias Toffoli.

No dia 15 de abril o Ministro Alexandre de Morais determinou que a revista “Crusoé” retirasse a matéria publicada, sob pena de multa diária de R$100 mil reais. Houve críticas por parte de diversos setores, alegando que a conduta do Ministro é um atentado contra liberdade de imprensa, garantida pela Constituição Federal de 1988.

Logo em seguida, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, encaminhou ofício ao Supremo, “pedindo” o arquivamento do inquérito iniciado por Toffoli, pois o mesmo estava sendo conduzido sem a participação da PGR. O pedido de arquivamento foi indeferido pelo relator Alexandre de Moraes.

Ora, pode o Ministro do STF, de ofício, iniciar um inquérito, realizar investigações e julgar os fatos apurados, na mesma instituição?

Vejamos:

Historicamente, existem três sistemas de processo penal: inquisitivo, acusatório e misto.

Se analisarmos os fatos mencionados acima para adequarmos a um dos sistemas, o inquisitivo, sem dúvidas, seria o escolhido, conforme os fundamentos a seguir.

O sistema inquisitivo trata-se de uma concentração do poder nas mãos do julgador, que também é acusador. Nesse sistema não há essa diferença, ou seja, a mesma pessoa que acusa, julga as acusações. Foi a partir desse sistema e devido à ideologia que foi implantada por ele que resultou a inquisição por parte da igreja católica, a qual praticou uma “caça as bruxas” no século XIII, queimando pessoas vivas, sem qualquer chances de defesa das acusações. Ou seja, a igreja acusava, e ela mesma promovia o julgamento sem oportunidade de defesa às pessoas condenadas. Trata-se de um sistema muito utilizado de maneira individual na idade média, totalmente fora de mão em relação aos atuais procedimentos do sistema processual-penal.

Com o advento da revolução francesa, a partir de ideias iluministas, outra realidade ganhava forma, a realidade construída a partir de princípios como o racionalismo, o naturalismo, o liberalismo, a igualdade perante a lei. Com isso, o sistema inquisitivo se tornou incompatível.

No sistema acusatório, por sua vez, existe a separação entre quem acusa e quem julga. Esse sistema prevê o contraditório, a livre produção de provas e a plena defesa do acusado.

O sistema misto, como já se percebe, é uma união das essências dos dois sistemas anteriores. É o sistema adotado no Brasil. Mas a verdade é que não se pode pensar na hipótese de adotar o sistema inquisitivo ou acusatório de forma individualizada. O primeiro é mais adequado à fase de investigação do processo penal, ou seja, a fase que antecede qualquer ação penal. É o momento de colheita de provas e informações que vão ajudar na convicção do julgador. O segundo se adequa à segunda fase do processo penal, que é o momento em que o acusado poderá se defender de todas as acusações existentes, por todos os meios legais permitidos para tal. É possível utilizar o sistema inquisitivo desde que sejam garantidos ao acusado todos os meios de defesa e assegurados os seus direitos fundamentais, daí a expressão inquisito-garantista, isto é, misto.

O procedimento adotado pelo Supremo a partir do inquérito de fake News vai contra todo o sistema processual penal misto adotado desde a promulgação da Constituição de 1988 e mantido até os dias atuais.

Eleva o grau da problemática em questão quando lembramos que se trata de violação ao direito da liberdade de imprensa. A Constituição Federal dá plena liberdade nesse sentido. O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, contrariar dispositivo da Carta Magna é uma perfeita incoerência de função.

A liberdade de imprensa não se trata de direito somente daqueles que a exercem de maneira profissional, ou seja, os jornalistas, editores, escritores etc. É igualmente uma afronta ao direito que possui qualquer cidadão de ser informado, por todos os meios de sua conveniência. O relato de uma matéria a qual envolve um agente público, que supostamente foi citado em tratativas ilícitas, é de interesse de toda a nação, que deve acompanhar e fiscalizar todas as condutas de seus servidores.

O fato da Procuradora-Geral da República pedir o arquivamento do inquérito foi uma tentativa de fechar uma fenda aberta no estado democrático de direito. As razões de Raquel Dodge foram fundadas no que dispõe a lei sobre a ação penal: sua titularidade é do Ministério Público. Ou seja, não cabe ao STF instaurar um inquérito de ofício, sem dar ciência formal ou encaminhar ao autos ao Ministério Público Federal para manifestação deste.

A democracia brasileira, talvez nunca tenha sofrido um golpe tão duro como esse desde quando a Constituição de 88 foi implantada. Não podemos entrar no mérito sobre as alegações do delator Marcelo Odebrecht acerca do Ministro Dias Toffoli. Os Ministros do Supremo merecem todo o respeito e admiração da sociedade, pois se trata de juristas de altíssima reputação e conhecimento jurídico. Trata-se de uma corte fundada em 1891, que sempre atuou em busca da defesa das constituições. Entretanto, em momentos em que o Brasil procura se recuperar de graves crises política e econômica, não é plausível que a Instituição máxima de justiça atue contra os princípios do estado democrático de direito.

Ricardo Torres é Advogado e Consultor do Siman Advogados, escreve semanalmente para o nosso site.